"Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciencias e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de sí e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes." Marilena Chaui

"Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender e, se podem aprender a odiar podem ser ensinadas a amar". Nelson Mandela

"É preciso atrair violentamente a atenção para o presente do modo como ele é, se se quer transformá-lo. Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade". Antonio Gramsci

domingo, 26 de julho de 2015

Mandela: uma face humana para o capitalismo

Na parte final de sua vida Nelson Mandela foi amplamente considerado um “santo” moderno. Aparecia como um modelo de humildade, integridade e honestidade, demonstrando uma incrível capacidade de perdoar.
Segundo um boletim recente da Oxfam, a África do Sul é “o país mais desigual do planeta e significativamente mais desigual do que no fim do “apartheid”. O Congresso Nacional Africano (CNA) está há quase 20 anos governando uma sociedade em que as privações da maioria negra continuam aumentando. Ainda assim, apesar de fazer parte do CNA desde os anos 40, Mandela sempre foi visto na África e no resto do mundo como alguém diferente de outros líderes.

Um cristão verdadeiro?

Sua autobiografia de 1994, “Longa Caminhada Até a Liberdade”, é um valioso guia sobre a vida e ideias de Mandela. Mesmo que com um viés parcial, ela demonstra as preocupações e prioridades do autor (as citações em itálico no decorrer do texto foram retiradas do livro)Por exemplo, depois de 27 anos na prisão, ao ser solto em fevereiro de 1990, Mandela não demonstrava qualquer sinal de rancor contra seus algozes: 
  • “Na prisão, a raiva que sentia dos brancos diminuiu, mas minha raiva contra o sistema aumentou. Queria que a África do Sul visse que eu amava até mesmo meus inimigos, ao mesmo tempo que odiava o sistema que nos jogava uns contra os outros”. Se isso soa como o ditado cristão “ame o pecador, odeie o pecado”, é em parte por ser isso mesmo. Relembra que ao receber a visita de dois editores do Washington Times na prisão “disse a eles que era e sempre tinha sido um cristão”. 
Fica claro também como este traço de sua personalidade foi útil ao capitalismo sul-africano. Após Mandela deixar a prisão, uma das principais tarefas do Congresso Nacional Africano foi garantir potenciais investidores que um futuro governo do partido não ameaçaria seus interesses. Na “Mensagem de Mandela ao Big Business” (19/06/1990), está dito por ele em diversas ocasiões:“o setor privado, tanto doméstico como internacional, trará uma contribuição vital para a reconstrução da África do Sul após o apartheid... Somos sensíveis ao fato de que para investir numa África do Sul pós-apartheid, vocês terão que ter confiança na segurança de seus investimentos, um retorno adequado de seu capital e um clima geral de paz e estabilidade”. Mandela pode ter falado como um cristão, mas um cristão que compreendia as necessidades dos negócios.

Um nacionalista consistente

Mandela era certamente consistente, capaz de ver no presente a continuidade do passado. Quando, por exemplo, o CNA se sentou pela primeira vez para conversar oficialmente com o governo em maio de 1990, o futuro presidente disse ter lhes dado uma lição de história. “Expliquei a nossos interlocutores que desde sua fundação em 1912 o CNA sempre procurou negociar com o governo”.
Mandela frequentemente se referia à “Carta da Liberdade” do CNA, adotada em 1955:“Em junho de 1956, no boletim mensal Liberation, eu apontei que a carta endossava a iniciativa privada e permitiria que o capitalismo florescesse entre os africanos pela primeira vez”. Em 1988, durante negociações secretas com o governo, ele se referiu ao mesmo artigo, dizendo:“a Carta da Liberdade não era um guia para o socialismo, mas para o capitalismo em estilo africano. Disse a eles que não havia mudado de ideia desde então”.
Quando Mandela foi visitado em 1986 por uma comissão, disse-lhes “que era um nacionalista sul-africano, não um comunista e que existem nacionalistas de todas as cores e formatos”. Este nacionalismo era intransigente. Quando se aproximavam as eleições de 1994 e ele se encontrou com o presidente F.W. de Klerk num debate televisivo, afirmou: “senti que havia sido áspero demais com o homem que viria a ser meu parceiro num governo de unidade nacional. Resumindo, disse que ‘as trocas entre o senhor de Klerk e eu não deveriam obscurecer um fato importante. Considero que somos um exemplo brilhante para o mundo todo de pessoas vindas de grupos raciais diferentes que têm em comum lealdade e amor por seu país”
A partir da metade da década de 1970, Mandela recebeu visitas do ministro das prisões: “no decorrer dos anos o governo havia mandado ‘pegadinhas’, começando com a tentativa do ministro Kruger de me convencer a ir morar no Transkei. Não eram esforços para negociar, mas tentativas de me deixar isolado da minha organização. Em várias outras ocasiões Kruger me disse: ‘Mandela, podemos trabalhar com você, mas não com seus colegas’”.
O governo sul-africano reconhecia que havia algo diferente em sua personalidade que finalmente possibilitaria algum tipo de negociação. E, em dezembro de 1989, ao encontrar de Klerk pela primeira vez, Mandela pôde dizer que “o senhor de Klerk parecia representar uma real mudança em relação aos antigos políticos do Partido Nacional. Ele era um homem com quem nós poderíamos fazer negócio”.
No final, este respeito mútuo fez com que o Prêmio Nobel da Paz de 1993 fosse dado conjuntamente a Mandela e de Klerk,por “seu trabalho pelo fim pacífico do regime de Apartheid e por construírem as fundações de uma nova África do Sul democrática”.
Este objetivo a longo prazo não foi uma preferência pessoal de Mandela, mas algo que correspondia às necessidades do capitalismo. Após o massacre de Sharpeville em 1960, como conta a biografia de Mandela,“A bolsa de valores de Johannesburgo desabou e o capital começou a se retirar do país”.
O fim do Apartheid deu início a um período de crescimento do investimento estrangeiro na África do Sul. A democracia, no entanto, não beneficiou a maioria da população. Na década de 50, Mandela disse que “o objetivo secreto do governo era criar uma classe média sul-africana para diminuir o apelo do CNA na luta de libertação”.
Na prática, a “libertação” e um governo do CNA aumentaram pouco a classe média africana. Ela também acarretou repressão, remilitarização da polícia, proibição de protestos e ataques aos trabalhadores como, por exemplo, na greve dos mineiros de Marikana, em que 44 operários foram mortos e dezenas ficaram seriamente feridos.
Mandela foi capaz de afirmar que “todos os homens, até mesmo de sangue mais frio, têm um núcleo de decência e se seus corações são tocados, eles são capazes de mudar”.  Pode ser verdade em relação a indivíduos, mas não em relação ao capitalismo, que não tem um “núcleo de decência” e não pode ser mudado. As caras do governo do CNA são diferentes de seus predecessores brancos, mas a exploração e a repressão continuam.

Meios para um fim

O CNA com sua luta de “libertação” fez uso tanto da violência como da não-violência em suas campanhas. Ao perceber que táticas não-violentas não estavam funcionando, o partido criou uma ala militar, na qual Mandela exerceu um papel central: “Consideramos quatro tipos de atividades violentas: sabotagem, guerrilha, terrorismo e revolução aberta”. Esperavam que a sabotagem “traria o governo para a mesa de negociação”, mas instruções precisas foram dadas para que “vidas fossem poupadas. Mas se a sabotagem não desse os resultados que queríamos, estávamos preparados para seguir ao próximo estágio: guerrilha e terrorismo”.
Então, em 16 de dezembro de 1961, quando “bombas caseiras foram detonadas em centrais elétricas e escritórios do governo em Johanesburgo, Port Elizabeth e Durban, isso não significou que os objetivos do CNA haviam mudado – a democracia ainda era a meta.
Depois de maio de 1983, quando o CNA explodiu seu primeiro carro bomba, matando 19 pessoas e ferindo mais de 200, Mandela disse que “a matança de civis foi um trágico acidente e sinto profundo horror em relação às mortes. Mas por mais incomodado que estivesse por causa das vítimas, sabia que acidentes do tipo eram as consequências inevitáveis da decisão de embarcar na luta militar”. Hoje, utiliza-se para tais “acidentes” o eufemismo mais moderno de “danos colaterais”.

Homem e Mito

Na década de 1950, a esposa de Mandela se tornou Testemunha de Jeová. Ele disse que apesar de “considerar alguns aspectos da (publicação) A Sentinela interessantes e valorosos, eu não compartilhava sua devoção. Havia um elemento obsessivo que me desestimulava”. Nas discussões do casal, relembra:“eu explicava a ela pacientemente que a política não era uma distração e sim o trabalho da minha vida, uma parte essencial e fundamental do meu ser”.
Tais diferenças os levaram a uma “batalha pelas mentes e corações dos nossos filhos. Ela queria que eles fossem religiosos e eu pensava que eles deveriam ser politizados”. E a que política eles foram expostos? 
  • “Eu tinha imagens de Roosevelt, Churchill, Stálin, Gandhi e da tomada do Palácio de Inverno em São Petersburgo em 1917 nas paredes da casa. Expliquei aos meninos quem era cada um daqueles homens e o que eles defendiam. Eles sabiam que os líderes brancos da África do Sul defendiam algo totalmente diferente”. 
Há um contraste interessante aqui. De um lado, quatro lideranças da classe dominante capitalista (não tão diferentes assim da burguesia sul-africana) e, do outro, um dos momentos mais importantes da história da classe trabalhadora.
Mandela disse ter tido pouco tempo para estudar Marx, Engels ou Lenin, mas ele“concordava com o mandamento básico de Marx, que era a simplicidade e generosidade da Regra de Ouro: de cada um conforme suas habilidades, a cada um conforme suas necessidades”.
Por mais que ele “concordasse com o mandamento”, a história do CNA demonstra um século a serviço do capitalismo sul-africano. Seja em protestos ou guerrilha, os objetivos eram nacionalistas ou apenas uma válvula de escape, já que ele acredita que“o povo deve poder dar vazão à sua raiva e frustração”. No governo, as fases mudaram de Mandela a Mbeki a Motlanthe e agora Zuma, mas não houve mudanças na vida da maioria. A única diferença entre os presidentes é que Mandela tinha uma imagem melhor.
Mandela percebia bem seu próprio mito. Ele fazia questão de dizer que não era um“santo” nem um “profeta” nem um “messias” num mundo em que a maioria dos políticos se devota à autopromoção e enriquecimento.
Esta modéstia era uma das características mais atraentes de Mandela. Ela poderia ser explicada por suas origens na religião Metodista. Em seus 27 anos preso, ele perdeu o culto dominical apenas uma vez, “Apesar de ser metodista, eu frequentava as cerimônias de cada uma das outras religiões”.
Independente das origens da modéstia de Mandela ou de sua aparente decência, está claro que ele será a face da campanha eleitoral do CNA em 2014. E além da África do Sul, o mito de Mandela continuará sendo um dos pilares da ideologia democrática moderna.
Em sua carreira como advogado, Mandela foi, como ele próprio relata,“de uma visão idealista da lei como uma espada da justiça à percepção da lei como uma arma usada pela classe dominante para moldar a sociedade a seu favor”.
Ele não faz uma crítica similar da democracia. Em seu depoimento de 1964 ao tribunal ele expressou sua “admiração” pela democracia: “Tenho grande respeito pelas instituições políticas britânicas e pelo sistema de justiça do país. Considero o parlamento britânico a instituição mais democrática do mundo e sempre fico admirado com a independência e a imparcialidade do poder judiciário. O congresso americano, a doutrina do país de separação dos poderes, assim como a independência de seu judiciário também me causam sentimentos semelhantes”.
Seja qual for seu caráter como pessoa, o trabalho de sua vida foi a serviço da democracia capitalista. Já o capitalismo, continua utilizando as melhores qualidades de Mandela para o pior fim possível: a preservação de sua ordem social decadente.
Fonte: anpt.internationalism.org/ICConline/2014/Mdela%3A_uma_face_humana_para_o_capitalismo
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